Em Deus Confiámos - Outubro
Em Outubro,
Quando a vida se despede,
Perdi-te na multidão.
Vi muitos sóis dourados,
Universos incontáveis...
Mas não estavas.
Só a doce ausência de ti,
Que tão amargo me fizera,
Se encontrava.
Em Outubro,
Um de qualquer sol,
Tentei perder-me também.
Não te achei, só me perdi...
Quando Outubro acabar
manda-me, ao menos,
uma rosa de algures
e uma memória de ti.
"Outubro" – Imre Posjian
As recordações são sempre difusas e imprecisas para não magoarem. Tudo o que aconteceu lá, naquele sítio improvável, se adoçara com o tempo e só as coisas boas acontecidas ameaçavam ficar. As minhas queridas memórias...
Era Outubro outra vez. Novamente o tempo que me aguçava a nostalgia das coisas irremediavelmente perdidas nos passados da minha vida.
Era Outubro outra vez. E mais uma vez recordava o acontecido tanto tempo antes (teria sido mesmo antes?). Outubro outra vez, mas aquele algo diferente dos outros, longe que estava da minha mansão luxuosa e da família que me amava.
Londres estava cinzenta, envolta na eterna névoa inglesa, as pessoas enroladas em roupas quentes, apressadas em fugir à chuva miúda que caía. Uma chuva mais intensa tinha trazido outra pessoa para aquela história antiga... E eu estava ali por isso, para ver uma pessoa que me fora muito querida. Fora? Para ela seria, num distante e improvável futuro.
Mil Novecentos e Trinta e Sete fora um ano agitado, com Hitler cada vez mais forte e eu sem nada poder fazer sem que me chamassem louco e me colocassem num manicómio. Os que têm o poder nunca são loucos...
Strand Street tinha um aspecto gasto mas o prédio em que Karen residia era dos que tinha melhor aspecto. Hesitei quando cheguei junto da porta e li o nome junto da campainha de um dos apartamentos do segundo andar: Aaron Tillman. Resolvi não parar naquele ponto depois de vir do outro lado do oceano com aquele objectivo. Queria conhecer Karen.
Alguns momentos depois de tocar à campainha a porta abriu-se. Apresentei-me à criada com a vaga perspectiva de um possível negócio com o dono da casa. Quando entrei alguém me puxou uma perna das calças.
- Quem és tu? – perguntou-me a menina.
Os olhos travessos e alegres levaram-me a outro tempo.
Andámos com os adoradores de sóis durante alguns meses, vagueando através da floresta.
Depois da nossa chegada à velha árvore fizéramos amigos entre os nossos salvadores e passámos a fazer parte da sua comunidade. Eram alegres e livres, Deus não tinha poder para os deter e eles tentavam deter Deus em tudo o que lhes era possível. Eles eram a pouca sensatez que ali existia.
Não se podia afirmar que fôssemos infelizes, mas no espírito de cada um de nós estava o lugar de onde viéramos, trazidos para aquele jogo insano por um Deus louco.
- Jesus Cristo? Não se incomodem, ele ressuscita-o.
- Então sempre tem algum poder!
- De maneira nenhuma! Não é ele que faz isso, quem trata dessas coisas é o reconstrutor, que constrói um clone integral dos que morreram, idêntico até à mais pequena memória esquecida em qualquer canto do cérebro.
- Mas isso não é ressuscitar!
- Meu caro Roger, a única maneira de ressuscitar é essa, não pense mais em mitos e histórias fantasiosas. É tudo falso.
- Thurin, há alguma hipótese de voltarmos para onde pertencemos?
- Existem muitas hipóteses, falta atingirmos uma delas. Se conseguíssemos atingir um portal com um dos nossos túneis temporais, nem que fosse só por momentos... O pior é que eles estão atentos e é muito difícil, se não impossível, conseguir isso. Se lhes pudéssemos desviar as atenções com algo grande, algo que os ocupasse durante algum tempo...
- Há algo que eles temam? – inquiriu Kurt.
- No início de tudo não existia lógica. Quando as leis do nosso universo se começaram a definir, quando tudo estava ainda instável e as hipóteses de uma coisa ser assim ou de outra maneira eram ambas perfeitamente viáveis, antes da lógica do ente e do seu contrário vencer, o universo cometeu um erro, e num dos seus recônditos "lugares" prevaleceu uma lógica tripartida. Cada ente não tinha um oposto mas sim dois, que por sua vez eram também opostos entre si. Dois destes pólos acabaram por se integrar no universo comum, pior ou melhor. Nós somos a terceira parte, o oposto que não encontrou par, apesar de pertencermos intrinsecamente a este universo. O único medo que os atormenta é o medo da aniquilação, o receio de que o universo normal aniquile este tumor e os aniquile também.
- Mas que raio de Deus é este que não...
Thurin interrompeu Karen:
- Deus é o supremo erro, não é uma consequência lógica da existência de um universo. É certo que no princípio o universo beneficiou com ele, mas Deus só actuou porque também lucrava com as acções que empreendeu. Nada é de graça, nem mesmo a esse nível.
- Existirá algum modo de os fazer crer que o momento do ajuste de contas chegou?
- Podemos tentar...
O sorriso de Thurin deu-nos mais que uma mera esperança.
Quando um pranto irrompeu da terra, todos julgámos chegado o momento. Kurt voltou-se para Liharn:
- É agora, Liharn?
- Temo que sim, Kurt, mas não o que estás a pensar. O momento chegou, não a simulação do momento, mas ele próprio.
- O quê? – gritei eu acima do rumor que crescia.
- É o fim que chega.
- Mas então estamos perdidos! – disse Karen.
- Nem sempre o fim significa o terminar de tudo. Sempre pensei que a velha árvore seria a âncora que nos prende ao universo. Talvez seja ela a Verdade, não sei.
A voz de Liharn chegava até nós distorcida e as imagens que nos cercavam pareciam estar loucas.
- Vamos. – disse Liharn, ou pelo menos assim me pareceu, embora o estivesse a ver apontando para o alto, para um céu onde julguei ver árvores dissolvendo-se contra um fundo púrpura que substituía o azul cálido que nos habituáramos a ver.
Flutuámos em direcção à árvore, desajeitadamente, tentando seguir Liharn. Pelo menos julgava vê-lo à nossa frente.
A velha árvore era a única coisa incólume naquele caleidoscópio de formas em que se tornara a floresta. Quando a porta já estava ao nosso alcance uma violenta vibração fez desaparecer o solo debaixo de nós e fez desaparecer Liharn. Vendo bem, todos tínhamos desaparecido.
Não sei se tudo se perdeu, ou se alguma coisa se manteve depois do cataclismo. Eu vi-me sem Karen e sem Kurt, dentro do meu sobretudo castanho numa rua suja de New York, e desde então nada mais me acontecera que me desse qualquer indicação sobre o que se passara.
Sonho? Não, sonho não, ainda guardava ciosamente o relógio e os volumes encadernados que Douglas Lapuane me impingira tanto tempo atrás.
Descobri-me em Outubro de 1928, antes da queda da bolsa e sabendo todos os pormenores sobre ela, porque já a tinha vivido. Não cometi erros desta vez, e fiquei rico, eu e os meus sócios, e sobrevivi à depressão, mas nunca vivi numa pequena quinta algures no Midwest. Nunca vi Douglas Lapuane e no entanto possuía os livros que ele me vendera junto com o relógio que marcava um tempo que eu não sabia qual era.
Despedi-me da pequena Karen e dos seus pais, mortos precocemente anos depois, e despedi-me do meu futuro que nunca tinha acontecido. O dinheiro que depositara numa conta de um banco de Londres em seu nome ser-lhe-ia útil depois da morte dos pais. O tempo não me deixava tê-la.
Trouxera comigo os volumes, lidos e relidos através de todos aqueles anos, recordações do futuro que eu não podia atingir. A seu tempo, provavelmente, Kurt e Karen também teriam aquele género de recordações. Não, Karen destruíra a sua telefonia que transmitia pedaços do futuro, só Kurt possuiria a sua estátua de mil faces.
Folheei "Landscapes and Dignity" pela enésima vez mas uma das reproduções de quadros que o ilustrava captou-me a atenção: parecia algo diferente. Só depois notei a frase escrita num dos cantos da paisagem.
O quadro era simples: mostrava no primeiro plano uma pequena clareira ensolarada com uma velha árvore no seu centro. Ao fundo, transformando em contraluz tudo o que estava próximo do horizonte, o disco vermelho do sol.
A frase era simples: dizia apenas "Por trás do Sol há sempre qualquer coisa – Liharn". Fiquei contente por saber, ao fim de tanto tempo, que nem tudo terminara e que existia alguém que continuava a adorar o sol...
O paquete deslocava-se ao longo do cais, por entre risos e choros, e eu deixei-me levar com ele, deixando para trás Londres mas não Outubro.
Para mim será sempre Outubro na minha alma.
FIM
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